Encontrei-a num dia da minha vida. Uma vida muito curta e ainda a muitas vidas de distância daquela mulher vivida. Passeava-me naquele dia pelo centro da Cidade da Guatemala, tacteando as pedras das calçadas que forram as ruas da cidade. Cheirando os aromas culinários que se dissipavam no ar e me eram trazidos pelos caprichos da brisa rara que se fazia sentir de vez em quando. Olhando cada olhar que com o meu se cruzava. Ou tão-só uma fachada de edifício, uma frontaria de igreja, uma bicicleta engalanada que era pedalada por alguém que nunca conheci. E todos os sabores dos restantes sentidos se cruzavam na minha boca, degustando-os devagar, mastigando-os calmamente e deles tirando o mais imperceptível dos átomos que traziam uma mensagem aos meus sentidos. Encontrei-a por entre uma multidão de algazarras compostas por gritos de crianças, pelas diferentes estações radiofónicas que se cruzavam no ar, bailavam perante todos, e seguiam as suas ondas hertzianas em direcção a quem as quisesse captar. A hora era a do almoço, abrasada pelo sol magnânimo que tudo fazia reluzir. Reluziam as fontes que respingavam água em malabarismos e contorcionismos aquáticos. Reluziam as bancadas que se iam enchendo de gente para verem a procissão passar mais tarde. Reluziam os carrinhos de bebé empurrados pelos sorrisos de pais e mães que também reluziam. E reluziam os cães por entre toda aquela gente, reluziam os carros que se esgueiravam cautelosamente por entre a multidão, reluziam os sinos das torres das igrejas, reluziam os carrinhos de vendas de guloseimas, reluziam os balões coloridos levados por alguém, reluziam os sapatos acabados de engraxar, reluziam as minhas ideias por entre todo aquele reluzir. Gente ia e vinha. Parava. Sentava-se e mordiscava um qualquer petisco trazido de casa já que os quetzal não davam para tudo devido à carestia da vida. Gente reclinava-se em cima de um muro de pedra à sombra de uma árvore. Gente deitava-se num pedaço de relva que ainda não tinha sido conquistado. Gente conversava à beira de um balcão de bar improvisado. Gente corria atrás de uma criança. Criança que corria atrás de um bando de pombos que tivera a ousadia de vir ver o que se passava na tarde da cidade entregue e devotada às coisas da religião. E os polícias passavam. Eram muitos a patrulhar. A sorrir. A aconselhar, a ajudar, a indicar, a informar, a passear por entre os magotes de gente que se apinhavam na praça principal da cidade. Ou então estavam parados, os polícias, enquanto controlavam o caminhar errante dos que passavam, ou a serenidade dos que ficavam. Encontrei-a no meio de tudo isto. Como uma estrela que se destaca no meio dos milhões de estrelas que vagueiam pelo espaço. Só que esta não vagueava propriamente. Estava sentada por detrás de um fogão onde se cozinhavam comidas que haveriam de ser ingeridas por alguém. Por quem por aqui passasse e pelas suas artes culinárias se apaixonasse. Olhei-a, assim como ela me olhou. Sorri-lhe, assim como ela me sorriu. E foi um daqueles momentos em que nada se diz, mas em que tudo fica dito. Nunca lhe cheguei a dirigir a palavra. Para quê? Há momentos em que nada é preciso dizer para tudo se ficar a saber. E depois afastei-me por vergonha de lhe apontar a minha máquina à queima-roupa. Afastei-me vários metros, trocando de objectiva por uma de maior alcance. Disfarcei-me por entre a multidão, fingindo estar a fazer algo que nada teria que ver com ela. Mas tinha. Porque ela tinha-me obrigado a parar, tinha-me seduzido com o seu simples encanto e com toda a beleza que lhe escorria daquele olhar. Depois, por entre uma brecha que a multidão abriu para mim, disparei. No preciso momento em que a mulher voltava a olhar-me directamente. Não sei se me viu, já que o seu olhar me parece ausente. Não sei se sorriu, já que o seu sorriso parece esconder-se por detrás de uma mão que tenta esconder a beleza de que é feita esta mulher. Uma vida inteira que se lê cuidadosamente nas rugas que encharcam a sua cara. Tantas vidas que por esta mulher passaram. Tantas histórias que fazem parte da sua expressão. Expressas num olhar que parece pedir desculpa por olhar. Expressas naquela mão esguia cujas veias e pele enrugada se combinam na perfeição e desenham ideias e passados em cada movimento que fazem. Quanta vida se acumula naquela testa franzida, naqueles caminhos traçados pelo tempo e em que o tempo já não importa. O que tanto terão ouvido aqueles ouvidos de onde se penduram duas simples argolas de ouro? O que tanto terá cuidado aquela mão que ostenta um vestígio de adorno de alguém que sempre se soube bonita e que sempre gostou de se arranjar. Terá embalo crianças. Terá amado homens. Terá suportado dores. Assim como os ouvidos terão captado choros e gargalhares. Terão ouvido lamentos e declarações de amores. Terão ouvido histórias que a sua boca um dia terá reproduzido. Boca que agora se esconde por detrás de uma vergonha assumida por alguém que continua a distribuir beleza por onde passa. Uma vergonha descabida. Uma beleza consentida. O seu turbante de tecido branco e pobre esconde com certeza um belo cabelo branco que apenas consigo imaginar no todo que não me é permitido ver. Mas que me é permitido escrever. Encontrai-a num lugar onde nunca imaginei poder encontrá-la. Talvez por nunca ter pensado que ela pudesse existir. Ou terá sido ela que me encontrou no meio da multidão. O tal raio de luz que me fez virar, sentir e sorrir quando para ela olhei pela primeira vez. Nunca chegarei a saber o seu nome. Talvez Mercedes. Talvez Cármen. Talvez Maria. Talvez Luz. Mas sei que é uma das mulheres mais bonitas com que algum dia me cruzei.
2 comentários:
E porque não dissertar sobre esse rosto?
Encontrei-a num dia da minha vida. Uma vida muito curta e ainda a muitas vidas de distância daquela mulher vivida.
Passeava-me naquele dia pelo centro da Cidade da Guatemala, tacteando as pedras das calçadas que forram as ruas da cidade. Cheirando os aromas culinários que se dissipavam no ar e me eram trazidos pelos caprichos da brisa rara que se fazia sentir de vez em quando. Olhando cada olhar que com o meu se cruzava. Ou tão-só uma fachada de edifício, uma frontaria de igreja, uma bicicleta engalanada que era pedalada por alguém que nunca conheci.
E todos os sabores dos restantes sentidos se cruzavam na minha boca, degustando-os devagar, mastigando-os calmamente e deles tirando o mais imperceptível dos átomos que traziam uma mensagem aos meus sentidos.
Encontrei-a por entre uma multidão de algazarras compostas por gritos de crianças, pelas diferentes estações radiofónicas que se cruzavam no ar, bailavam perante todos, e seguiam as suas ondas hertzianas em direcção a quem as quisesse captar.
A hora era a do almoço, abrasada pelo sol magnânimo que tudo fazia reluzir. Reluziam as fontes que respingavam água em malabarismos e contorcionismos aquáticos. Reluziam as bancadas que se iam enchendo de gente para verem a procissão passar mais tarde. Reluziam os carrinhos de bebé empurrados pelos sorrisos de pais e mães que também reluziam. E reluziam os cães por entre toda aquela gente, reluziam os carros que se esgueiravam cautelosamente por entre a multidão, reluziam os sinos das torres das igrejas, reluziam os carrinhos de vendas de guloseimas, reluziam os balões coloridos levados por alguém, reluziam os sapatos acabados de engraxar, reluziam as minhas ideias por entre todo aquele reluzir.
Gente ia e vinha. Parava. Sentava-se e mordiscava um qualquer petisco trazido de casa já que os quetzal não davam para tudo devido à carestia da vida. Gente reclinava-se em cima de um muro de pedra à sombra de uma árvore. Gente deitava-se num pedaço de relva que ainda não tinha sido conquistado. Gente conversava à beira de um balcão de bar improvisado. Gente corria atrás de uma criança. Criança que corria atrás de um bando de pombos que tivera a ousadia de vir ver o que se passava na tarde da cidade entregue e devotada às coisas da religião.
E os polícias passavam. Eram muitos a patrulhar. A sorrir. A aconselhar, a ajudar, a indicar, a informar, a passear por entre os magotes de gente que se apinhavam na praça principal da cidade. Ou então estavam parados, os polícias, enquanto controlavam o caminhar errante dos que passavam, ou a serenidade dos que ficavam.
Encontrei-a no meio de tudo isto. Como uma estrela que se destaca no meio dos milhões de estrelas que vagueiam pelo espaço. Só que esta não vagueava propriamente. Estava sentada por detrás de um fogão onde se cozinhavam comidas que haveriam de ser ingeridas por alguém. Por quem por aqui passasse e pelas suas artes culinárias se apaixonasse.
Olhei-a, assim como ela me olhou. Sorri-lhe, assim como ela me sorriu. E foi um daqueles momentos em que nada se diz, mas em que tudo fica dito. Nunca lhe cheguei a dirigir a palavra. Para quê? Há momentos em que nada é preciso dizer para tudo se ficar a saber.
E depois afastei-me por vergonha de lhe apontar a minha máquina à queima-roupa. Afastei-me vários metros, trocando de objectiva por uma de maior alcance. Disfarcei-me por entre a multidão, fingindo estar a fazer algo que nada teria que ver com ela. Mas tinha. Porque ela tinha-me obrigado a parar, tinha-me seduzido com o seu simples encanto e com toda a beleza que lhe escorria daquele olhar.
Depois, por entre uma brecha que a multidão abriu para mim, disparei. No preciso momento em que a mulher voltava a olhar-me directamente. Não sei se me viu, já que o seu olhar me parece ausente. Não sei se sorriu, já que o seu sorriso parece esconder-se por detrás de uma mão que tenta esconder a beleza de que é feita esta mulher.
Uma vida inteira que se lê cuidadosamente nas rugas que encharcam a sua cara. Tantas vidas que por esta mulher passaram. Tantas histórias que fazem parte da sua expressão. Expressas num olhar que parece pedir desculpa por olhar. Expressas naquela mão esguia cujas veias e pele enrugada se combinam na perfeição e desenham ideias e passados em cada movimento que fazem.
Quanta vida se acumula naquela testa franzida, naqueles caminhos traçados pelo tempo e em que o tempo já não importa. O que tanto terão ouvido aqueles ouvidos de onde se penduram duas simples argolas de ouro? O que tanto terá cuidado aquela mão que ostenta um vestígio de adorno de alguém que sempre se soube bonita e que sempre gostou de se arranjar.
Terá embalo crianças. Terá amado homens. Terá suportado dores. Assim como os ouvidos terão captado choros e gargalhares. Terão ouvido lamentos e declarações de amores. Terão ouvido histórias que a sua boca um dia terá reproduzido.
Boca que agora se esconde por detrás de uma vergonha assumida por alguém que continua a distribuir beleza por onde passa. Uma vergonha descabida. Uma beleza consentida. O seu turbante de tecido branco e pobre esconde com certeza um belo cabelo branco que apenas consigo imaginar no todo que não me é permitido ver. Mas que me é permitido escrever.
Encontrai-a num lugar onde nunca imaginei poder encontrá-la. Talvez por nunca ter pensado que ela pudesse existir. Ou terá sido ela que me encontrou no meio da multidão. O tal raio de luz que me fez virar, sentir e sorrir quando para ela olhei pela primeira vez.
Nunca chegarei a saber o seu nome. Talvez Mercedes. Talvez Cármen. Talvez Maria. Talvez Luz. Mas sei que é uma das mulheres mais bonitas com que algum dia me cruzei.
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